CONTORNOS JURÍDICOS

X Jornada Lia Pires
21/08/2018

Por

Ney Fayet Júnior*

Alexandre Schubert Curvelo**

CONTORNOS JURÍDICOS NECESSÁRIOS PARA ANÁLISE DA CONTRATAÇÃO DIRETA DE ESCRITÓRIOS DE ADVOCACIA POR ENTE PÚBLICO — ENTRE A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA, A ILEGALIDADE E A INFRAÇÃO PENAL

Introdução

Em nossa sociedade atual, tem sido uma constante, notadamente a partir de núcleos acadêmicos orgânicos, a consolidação de um discurso de preservação (e, fundamentalmente, de ampliação) de uma consciência republicana (orientada às melhores virtudes democráticas), a cuja realidade diferentes esforços (intelectuais e políticos) se têm conjugado na busca da criação de uma alternativa por intermédio da qual a longa tradição de menoscabo com a coisa pública possa ser, em um primeiro momento, enfraquecida e, a seguir, eliminada de nosso horizonte histórico e social. E o menosprezo com a res pública vem de ser especialmente percebido em contextos licitatórios, em cujo ambiente grassa uma vinculação perniciosa entre, de um lado, comportamentos funcionais que desatendem a standards republicanos e coletivos e, de outro, motivações e interesses ilegítimos sob o ponto de vista da ordem democrática. Essa observação posta à entrada do texto nos remete, assim, à necessidade imperiosa de bem compreender (e, com isso, avaliar) as condutas em licitações públicas, catalogando-as à luz de alguns critérios substanciais por meio dos quais mais facilmente poder-se-iam identificar ações desvinculadas dos compromissos insertos em nossa ordem constitucional. Não pretendemos inovar o tema; o objetivo em mira é tão somente o de, no plano geral, pôr em destaque os princípios e regras que devem ser utilizados em procedimentos licitatórios; e, no plano específico, de discutir a sua projeção a uma hipótese concreta (de grande interesse e atualidade, vinculada à contratação direta de escritórios de advocacia por procedimento de dispensa ou de inexigibilidade de licitação).

Não resta dúvida de que o procedimento licitatório se compõe de atos vinculados e discricionários, modulados por lei, cujo duplo objetivo é, a um só tempo, o de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública (princípios da eficiência e eficácia) e o de garantir a mais ampla participação de todos os potencialmente interessados na prestação do serviço ou fornecimento do bem (princípio da isonomia).

Os graus de vinculação e discricionariedade são facilmente constatáveis na análise das normas que compõem o corpo da Lei 8.666/93; porém, parece-nos que se expressam com maior amplitude na contratação direta (procedimentos de dispensa e inexigibilidade de licitação). No presente ensaio, depois de discorrermos brevemente sobre ambos os institutos, suas principais características e peculiaridades, abordaremos questões relevantes do ponto de vista do entendimento jurisprudencial, notadamente com o fito de analisarmos a tênue linha divisória existente entre a legítima atuação discricionária (para a realização da contratação direta) e a prática de conduta ilegal ou de crime licitatório, tomando, como exemplo, a contratação de escritórios de advocacia por procedimento de dispensa ou de inexigibilidade de licitação.

1.Noções elementares: a discricionariedade e os limites para o exercício da função administrativa nas licitações públicas

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No campo do Direito Administrativo, sobretudo por força do princípio da legalidade, devemos anotar que a necessidade de fortalecimento institucional da Administração Pública fez com que, em um primeiro momento, em matéria de licitações públicas, a tendência legislativa originária se estabelecesse no sentido de limitar o campo da discricionariedade administrativa .

Desse modo, fortaleceu-se a noção segundo a qual os procedimentos licitatórios não poderiam ser guiados (apenas) no exercício da competência discricionária dos agentes públicos; tampouco de que os contratos públicos poderiam ser celebrados a partir de critérios determinados em razão de juízos de conveniência e oportunidade; e, por fim, também se chegou à conclusão de que esta é uma atividade condicionada pelo ordenamento jurídico como um todo, e não apenas pelas regras legais .

No entanto, essa noção originária esbarrou em diversos problemas de ordem prática, tornando os procedimentos morosos, burocráticos, ineficazes, inefetivos e antieconômicos. Não por outro motivo é que a tendência atual é a de inversão de fases nos demais procedimentos (como ocorre, por exemplo, na modalidade pregão ) e, mais recentemente, busca-se ampliar o alcance do procedimento potencialmente mais célere de todos, o RDC .

A questão reside muito mais em estabelecer os limites do exercício da discricionariedade legítima, o que resta bem caracterizado ao se avaliar que a atividade do agente público, ao fim e ao cabo, se encontra harmonizada com os princípios norteadores da atividade administrativa.


Consoante destaca a doutrina, depende o procedimento licitatório da ocorrência de alguns pressupostos, a saber: (a.) pressuposto lógico; (b.) pressuposto jurídico; e (c.) pressuposto fático ; à míngua de qualquer deles, os potenciais objetivos a que se destina o certame não serão alcançados.

Parte-se da premissa segundo a qual o procedimento licitatório, na conformação estrutural que a lei de licitações e contratos formalmente lhe impõe, somente será excepcionado no exercício da competência discricionária da Administração Pública, seja em hipótese de dispensa, seja de inexigibilidade de licitação, se (e somente se) fundamentadamente for demonstrada a ocorrência de hipótese legítima de conveniência e oportunidade administrativa aptas ao ensejo da contratação direta que se mostre eficaz à Administração Pública; nesses casos, compreendemos, inclusive, que, para fins de atendimento aos controles interno, externo e social, o agente público possui o ônus de demonstrar a efetividade da contratação e a inexistência de dano ao erário se fosse possível realizar o certame público.

Ao sustentar a necessidade de maior efetividade no que diz respeito à motivação da decisão administrativa de contratação direta nas licitações públicas, impende-nos ressaltar, não se quer estabelecer maior formalismo que aquele exigido no âmbito dos procedimentos licitatórios; ao contrário, o tema de fundo do presente ensaio, conforme será destacado, reside justamente em traçar os contornos específicos e indispensáveis de uma hermenêutica mais substancial e menos formal dos procedimentos administrativos.

Releva-nos notar, assim, que uma interpretação que leva em consideração os aspectos substanciais dos aludidos procedimentos vê nos princípios das licitações (art. 3° da LCC) a base para que se sigam apenas as formalidades essenciais àquilo que garante a fundamentalidade do certame público, sob pena de afronta ao princípio da razoabilidade .

Como é cediço, permite-se afastar a regra constitucional (art. 37, inc. XXI) da licitação, como procedimento administrativo prévio à celebração de contratos administrativos, apenas na ocorrência de duas hipóteses que, com diferenças de grau, são previstas na LLC, sob a natureza de exercício de função administrativa de natureza discricionária : a dispensa e a inexigibilidade de licitação (arts. 24 e 25 da LLC).

1.1.Da contratação direta: elementos gerais

Trataremos de ambas as situações de contratação direta (dispensa e inexigibilidade) como recorte específico de nossa abordagem, apenas nas situações em que poderiam, em tese, dirigir-se à contratação de serviços de advocacia.

Antes disso, porém, é preciso assentar certas premissas, especialmente a de que a contratação direta ocorrerá com a formalização de um procedimento administrativo, sendo que, nos momentos antecedentes à contratação, a atividade administrativa é muito semelhante àquela desempenhada previamente ao estabelecimento da disputa pública, pois existe a obrigatoriedade (vinculação) de demonstração motivada da necessidade de contratação, elaboração de projetos, verificação de previsões orçamentárias e, igualmente, demonstração das condições de aptidão do futuro contratado de acordo com os preceitos estabelecidos nos arts. 27 a 31 da LLC, os quais estabelecem a documentação indispensável à fase de habilitação .

Nesse cenário, não há como deixar de considerar que o elemento mais importante do aludido procedimento administrativo, no que se vincula à validação e legitimidade, diz respeito com a necessidade de motivação da contratação.


E isso ocorre porque o procedimento administrativo de contratação direta se cinge a excepcionar a regra constitucional do inc. XXI do art. 37 da CF cuja previsão é a de que, ressalvados os casos previstos na legislação, as obras, os serviços e as compras da Administração Pública direta e indireta serão contratados mediante licitação pública que assegure a igualdade de participação; é dizer, de outro modo, que a contratação direta, a priori, viola a regra de igualdade na participação de certames públicos estabelecida constitucionalmente. Mas mesmo que assim não fosse, isto é, que não houvesse a violação no plano constitucional da exigência, cuida-se da incidência específica do art. 50, inc. IV, da Lei 9.784/99, cuja obrigatoriedade de motivação é expressa para decisões que dispensem ou declarem a inexigibilidade de processo licitatório.

Não se olvide que, como regra geral, o art. 50 determina a motivação como requisito indispensável de validade de todos os atos administrativos , ressalvados apenas os chamados meros atos administrativos, decifráveis por sua evidente singeleza e porque não afetam direitos ou interesses legitimamente tutelados.

Tratando-se de decisão obrigatoriamente motivada , ainda que de natureza discricionária, passa a ser amplamente sindicável pelo Poder Judiciário, sobretudo a partir da teoria dos motivos determinantes e pelo exame negativo de legalidade de seu mérito — o assim chamado exame do demérito. Além da determinação genérica constante da lei de processo administrativo, o ato administrativo de dispensa ou inexigibilidade possuirá os seguintes elementos de vinculação: (a.) caracterização da situação excepcional, anômala; (b.) razão ou justificativa da escolha do fornecedor ou executante do serviço; (c.) justificativa do preço, com demonstrativo a partir do valor de mercado; (d.) documento de aprovação dos projetos e pesquisa aos quais os bens serão alocados, tudo de acordo com o que determina o parágrafo único do art. 26 da LLC.

Nesse rumo, ainda que a escolha do fornecedor possua caráter eminentemente discricionário, podendo o agente público optar de acordo com a sua conveniência e oportunidade, dita liberdade não se pode estender além dos limites qualificados legalmente e, no plano material, da substancial eficácia imanente ao ajuste (atendimento ao interesse público que a contratação encerra).

Se, de um lado, a conformação dos procedimentos de dispensa e inexigibilidade encontra nos requisitos referidos similaridade, de outro, não há como atribuir uma regra geral de aplicabilidade indistinta a ambos; ao contrário, não configura novidade afirmar que os procedimentos, na essência, possuem nítido caráter heterogêneo, seja no que diz respeito aos motivos de fato por que ocorrem, seja por decorrência dos motivos de direito a partir dos quais a lei lhes impõe justificação. Nas palavras de JUSTEN FILHO:

As hipóteses de contratação direta são bastante heterogêneas entre si. Isso impede o estabelecimento de padrões, aplicáveis a todos os casos. Mas há princípios gerais aplicáveis de modo uniforme. Um exemplo facilita o raciocínio. Não é possível assemelhar os casos de contratação direta fundada em emergência e em exclusividade de fornecedor. No primeiro caso, há dispensa de licitação e a Administração não dispõe do tempo necessário ao exame mais aprofundado do mercado. No segundo, existe inexigibilidade e a Administração, mesmo dispondo de tempo para pesquisar no mercado, não pode contratar senão como um determinado fornecedor. Logo, as cautelas e procedimentos a adotar em cada uma das hipóteses são diferentes. Em ambos os casos, porém, a Administração tem o dever de buscar a melhor contratação possível, em face das circunstancias, adotando todas as providencias que o caso poderia exigir. Assim, será viciada a contratação se a Administração qualificar como ‘emergência’ situação destituída de aptidão para colocar em risco valores essenciais tutelados pelo ordenamento. (…). Também será viciada a contratação quando a Administração concluiu existir um único fornecedor porque não realizou as pesquisas necessárias acerca da situação .

A contratação direta como procedimento atende ao preceito elementar e de caráter essencial para a Administração Pública consistente na viabilização dos controles que se fazem indispensáveis sobre o exercício da função administrativa, não só aqueles levados a efeito por métodos formais, mas, sobretudo, aqueles que permitem visualizar efetivamente o substancial atendimento aos preceitos que norteiam os ajustes públicos. É bem de ver, nesse contexto, que a efetiva documentação dos instrumentos que compõem o processo administrativo de contratação direta constitui dever dos servidores públicos envolvidos, ônus do contratado e direito do cidadão (alicerçado no princípio da transparência), a cuja responsabilidade a lei atribui as consequências e penalidades pertinentes, nas esferas cível, penal e administrativa. Dessa forma, o procedimento administrativo de contratação direta que atenda aos preceitos legais, formal e substancialmente, se insere no âmbito do exercício adequado da função administrativa, alinhando aos postulados essenciais de regência do Direito Administrativo.

A LLC, tonificando a necessidade de atendimento ao princípio da publicidade nos certames e contratos públicos, institui como necessária (sob pena de ineficaz) a publicação dos extratos atinentes ao procedimento de contratação direta , o que viabiliza (ainda mais) as formas de exercício do controle de legalidade (e legitimidade) sobre esses atos administrativos. Pela formatação legal estabelecida pelas normas gerais da LLC, portanto, o procedimento de contratação direta apenas se legitima, no esquadro dos princípios e das normas do regime jurídico-administrativo, por atender plenamente aos mesmos preceitos elementares das contratações públicas e concretamente aos seus dois pilares constitucionais: a isonomia entre os fornecedores iguais e o tratamento distintivo aos que ou atendam às peculiaridades legítimas de determinado contexto fático e/ou jurídico ou que demonstram a invulgaridade para a distinção específica para atendimento de uma necessidade e, em qualquer caso, a vantajosidade das propostas.

É preciso destacar, por fim, que o exercício da competência discricionária para condução e estabelecimento do procedimento de contratação direta implica em plena vinculação do agente público aos princípios estabelecidos no art. 3º da LLC, na conformação que os princípios da Administração Pública lhe emprestam (art. 37 da CF). Ou seja: na medida em que se possa fundamentar a contratação direta sem ofensa aos princípios fundamentais da Administração Pública e aos específicos contemplados pela legislação de regência da LLC.

1.1.1. A dispensa de licitação [como exercício da competência discricionária]

Caracteriza-se o procedimento de dispensa do certame licitatório, antes de tudo, pela possibilidade (faculdade e, portanto, competência discricionária) de realização ou não da disputa, a critério de uma legítima decisão administrativa; não por outro motivo é que o desígnio é no sentido de que o certame público, nas situações elencadas exaustivamente no art. 24 da LLC, é dispensável . Se é dispensável, com efeito, é porque a realização do procedimento licitatório é possível, até mesmo viável, pela presença de elementos capazes de concretamente viabilizar a competição; porém, não é estabelecido o procedimento licitatório em virtude de que a situação de fato e/ou de direito é constatada pelo agente público a quem a lei confere a competência para decidir. Nesse cenário, é preciso ponderar que a norma jurídica que estabelece a dispensa de licitação institui previamente a situação de fato, no entanto, é o agente público, através da motivação e da comprovação documental, que permite o preenchimento da norma jurídica. Sublinhe-se: a lei permite ao agente optar pela dispensa, todavia, a sua adoção apenas será legítima quando decorrer de decisão necessariamente motivada (e vinculada aos princípios da licitação).

O pressuposto básico para que se possa cogitar do procedimento de dispensa é, portanto, a possibilidade de se estabelecer o regime de competição entre potenciais fornecedores/prestadores de um determinado serviço para a Administração em igualdade de condições. De acordo com o que preceitua a doutrina, “a dispensa contempla hipóteses em que a licitação seria possível; entretanto, razões de tomo justificam que se deixe de efetuá-la em nome de outros interesses públicos que merecem acolhida” .

O intérprete administrativo, nesses casos, parte da compreensão de que existe a possibilidade concreta (viabilidade, ao menos, potencial) do estabelecimento do chamado regime competitório entre os fornecedores de um determinado setor do mercado; no entanto, com caráter de exclusividade, decide justificadamente demonstrando que, embora viável, o procedimento é inconveniente, inoportuno , ou até mesmo antieconômico. Para GASPARINI, “a dispensabilidade da licitação, quando autorizada, só libera a Administração Pública da promoção do procedimento de escolha da melhor proposta” . É dizer (no plano de controle do procedimento de contratação direta), em outras palavras, que a contratação direta levada a efeito apenas atenderá ao postulado da eficácia da contratação pública se efetivamente se mostrar ajustada ao objetivo estabelecido pela lei, o qual não será necessariamente (apenas) econômico .

De um modo geral, são agrupadas as hipóteses de dispensa de licitação (art. 24 da LLC) para fins meramente didáticos, em função: a) do custo econômico da licitação (incs. I e II); b) do tempo necessário para realização do procedimento licitatório (incs. III, IV, XII, e XVIII); c) da inexistência de benefício potencialmente verificável na realização da licitação (incs. V, VII, VIII, XI, XIV, XVII, XXII, XXVI, XXVIII); e d) função extraeconômica da contratação por meio da licitação (incs. VI, IX, X, XIII, XV, XVI, XIX, XX, XXI, XXIV, XXV, XXVII) .

Dessa maneira, parte-se da premissa segundo a qual incumbe ao agente público decidir, com exclusividade (reforça-se a ideia apenas para destacar o limite ao exercício do controle jurisdicional), se optará ou não pela realização do procedimento licitatório, sendo que apenas a decisão será legítima se atender, formal e materialmente, o que foi determinado pelo art. 24. Ressalte-se que a previsão (das diversas hipóteses de dispensa do procedimento licitatório) não tem (e não deve ter) o condão de inverter o sentido do instrumento: cuida-se de uma legítima exceção à regra constitucional da competição pública, que apenas se sustenta juridicamente quando atendidos os preceitos vinculantes e inafastáveis ao ajuste público; ou seja: se, por um lado, o procedimento de dispensa permite a decisão (discricionária) de não atendimento à regra da licitação, podendo ele optar entre duas ou mais soluções igualmente válidas , por outro, não permite a desvinculação da contratação aos demais princípios da LCC.

O procedimento de dispensa de licitação, ao fim e ao cabo, não configura meio anômalo de licitação , mas, sim, exercício típico (e legítimo) de competência discricionária da Administração, que, por sua natureza, não afasta a aplicação dos princípios da isonomia, da vantajosidade das propostas e, por fim, da legalidade.


1.1.2. Da indevida dispensa de licitação: entre a ilegalidade e o ato de improbidade administrativa

A infração ao disposto no art. 24 da LLC, isto é, dispensar a licitação fora das hipóteses ali previstas é, nos termos da legislação, conduta tipificada como improbidade administrativa, nos termos do que preceitua o disposto no inc. VIII do art. 10 da Lei 8.429/92, cuja redação é a seguinte:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:
VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente.

Para a prática da conduta tipificada como improbidade administrativa, no entanto, é necessário caracterizar o intento de dispensar a licitação fora das possibilidades previstas no art. 24, isto é, imprescindível é, para fins de condenação, que se prove, de modo irrefutável, ter o agente dolosamente (elemento subjetivo) dispensado o procedimento, na esteira do que tem decido STJ . Aqui, no entanto, deve-se fazer uma pequena ressalva: o dispositivo em causa apenas faz referência à hipótese da dispensa de licitação; no entanto, parcela da doutrina entende não ser possível realizar-se uma interpretação tão restritiva do preceito, pois

a idéia fundamental do texto é coibir o indevido alargamento das hipóteses em que não é exigida a licitação, logo, sob este prisma, dispensa e inexigibilidade se equivalem, sendo importante observar que a conduta do administrador que declara ser inexigível o procedimento licitatório é tão nociva quanto a daquele que o dispensa, pois é sustentada a absoluta impossibilidade fática de sua realização. O vocábulo utilizado é inadequado, mas a ‘ratio’ da norma é clara, cabendo ao intérprete romper as fronteiras da incoerência para abrigar-se sob o manto da justiça que emana da teleologia da norma e da própria dicção do ‘caput’ do art. 10 .

A questão, uma vez mais, volta-se à necessidade de efetiva motivação do ato de dispensa, como bem alerta a doutrina:

a motivação da dispensa, no entanto, é geralmente relevante, porque nem sempre uma dispensa indevida resulta de atuação dolosa ou sequer culposa, podendo encaixar-se nas margens de erro do administrador. Sabe-se da possibilidade de que o sujeito queira favorecer amigos, ou receber vantagens indevidas, ainda que não de caráter econômico (por exemplo: vantagens políticas), mas não se pode construir presunção contrária aos indícios de boa-fé. Por isso, nem toda a dispensa indevida, errônea, haverá de constituir infração .

Conforme bem ressaltado pela doutrina, na esteira do entendimento jurisprudencial, para a configuração do ato de improbidade administrativa não basta que tenha havido culpa na decisão de não realização do procedimento licitatório , porquanto a mera violação ao princípio da legalidade, o só descumprimento formal da regra que determina a realização do certame, a priori, não enseja a qualificação do ato tipificado como improbidade administrativa. Isso porque

pode haver dispensa — no mais abrangente sentido da expressão — com suporte em normas jurídicas controvertidas, caracterizando-se assunto como polêmico e defensável, da mesma forma como pode ocorrer essa mesma dispensa com franca e inequívoca violação dos comandos legais .

Entre o conceito estrito de ilegalidade e a prática de um ato de improbidade administrativa existe uma diferença (de grau) no que diz respeito ao desatendimento da lei; no entanto, ao passo que a ilegalidade decorre do descumprimento formal e direto do preceito normativo, o ato de improbidade obedece a uma tipologia específica, decorrente do princípio da tipicidade, também exigível, segundo sustentamos, como decorrência do princípio da legalidade, no Direito Administrativo . Mas não é só. A presença do elemento volitivo intencional de descumprimento da norma que determina o estabelecimento do certame licitatório determina um exame substancial, aproximado do que materialmente o descumprimento da lei provoca: ou seja, antieconomicidade do contrato entabulado, o dano ao erário decorrente da dispensa indevida, o favorecimento pessoal ou de terceiro relacionado à contratação direta.

Dessa forma, uma coisa é certa: a ilegalidade, eventualmente, detectável na dispensa indevida de licitação, nem sempre conformará um ato de improbidade administrativa (e quanto menos uma conduta penal punível).


A multiplicidade de incisos do art. 24 da LLC impede o exame detalhado de todas as situações em que, pelo menos em tese, se poderia incorrer na prática da ilegalidade ou da prática de ato de improbidade administrativa. Para melhor adequação temática, cumpre-nos analisar ao menos as hipóteses relacionas à dispensa de licitação por emergência, tendo em vista o fato de que, nas palavras de PEREIRA JÚNIOR, “os abusos na dispensa de licitação por suposta emergência multiplicam-se, sendo possível afirmar que o volume das aquisições sem licitação suplanta o daquele decorrente da competição pública, graças, em parte, à aplicação descriteriosa do permissivo da emergência” . Para JUSTEN FILHO, o dispositivo refere-se “aos casos em que o decurso do tempo necessário ao procedimento licitatório normal impediria a adoção de medidas indispensáveis para evitar danos irreparáveis” .

É preciso ponderar, nesses casos, que a própria lei é bastante efetiva no que diz respeito à delimitação do âmbito de atuação discricionária no que se relaciona a essa forma de contratação direta; em primeiro lugar, existe a necessidade de caracterização comprovada, documentalmente, da situação emergencial — sua imprevisibilidade ou inevitabilidade, se previsível; em segundo lugar, a limitação temporal para efetivação da contratação é outro fator decisivo no sentido de restringir o âmbito de discricionariedade, consubstanciado na impossibilidade de sua prorrogação; e, por fim, o fato de que os bens e os serviços contratados devam ser (diretamente) ligados ao atendimento da situação emergencial, e não para outras necessidades administrativas, ainda que prementes, ou também justificáveis por motivos outros. Em resumo: a demonstração da urgência para a realização da contratação deve ser concreta e efetiva no sentido da potencialidade do dano já existente ou na iminência de ocorrer; da mesma forma, há de ser evidenciado que a contratação se afigura como a via legitimamente adequada para redução ou eliminação do dano advindo da situação anormal. O que se pretende com a dispensa, nesse esquadro legalmente definido, é que a contratação direta se viabilize como sendo o instrumento redutor da assimetria criada pela situação urgente, considerando que o bem jurídico tutelado (com a contratação direta) se sobrepõe ao interesse legítimo dos integrantes do mercado que, em tese, poderiam se habilitar a um certame público para prestação dos serviços.

Em um dos precedentes que serão a seguir examinados , o STF entendeu que não constitui crime a contratação de advogados, com fundamento na hipótese do inc. IV do art. 24, apenas porque foi possível verificar que a aludida contratação se amoldava ao instituto da inexigibilidade de licitação: é dizer, apenas porque foi possível constatar que, substancialmente, a contratação encontrava fundamento, ainda em procedimento diverso, nos princípios da LLC, entendeu pela inexistência de dolo específico e, portanto, pela inexistência de elemento caracterizador do tipo penal capaz de dar ensejo à condenação. Nada obstante a isso, não configurada a infração penal, a contratação ainda poderia ser examinada à luz da responsabilidade administrativa e cível respectivas. Ocorre que, na prática, muitas vezes, a situação de emergência decorre da proposital inércia da autoridade competente (omissão antijurídica, portanto), voltada ao benefício de poucos, em detrimento daqueles que, potencialmente, poderiam participar dos certames públicos.

Um dos grandes problemas verificáveis da exegese do texto legal é que não há uma correta distinção entre a fonte causadora da situação emergencial, bastando a existência do risco (comprovado) de dano para que se autorize a contratação direta.
Para além da configuração do ato de improbidade administrativa, a dispensa de licitação, fora das hipóteses previstas no artigo referido, constitui crime, nos termos do art. 89 da LLC .

Verificando-se as hipóteses do art. 24, é possível constatar que a contratação de escritórios de advocacia, em tese, se enquadra apenas: a) II (em razão do valor) ; b) VII (quando as propostas apresentadas consignarem preços manifestamente superiores aos praticados no mercado nacional, ou forem incompatíveis); e c) XI (na contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento, em consequência de rescisão contratual, desde que atendida a ordem de classificação da licitação anterior e aceitas as mesmas condições anteriores oferecidas pelo licitante vencedor, inclusive quanto ao preço, devidamente corrigido).

1.2. Da inexigibilidade de licitação como exercício da competência discricionária

De há muito, trazendo a carga do que dispunha o vetusto art. 23 do Decreto-Lei 2.300-86, conceituava a doutrina a inexigibilidade de licitação como sendo o certame materialmente de impossível realização. Pela atual conceituação legal, nos termos do art. 25, não se tem definição das situações em que a licitação é inexigível, tendo em vista que não pretendeu o legislador elencar situações — de cunho exaustivo ou taxativo — a partir das quais estaria o agente público desonerado da realização do procedimento licitatório. Ao contrário, o caput do art. 25 enuncia o caráter geral da inexigibilidade como capaz de abarcar quaisquer das hipóteses de inviabilidade de competição. O que fez o legislador foi, assim, apenas estabelecer hipóteses de cunho exemplificativo, as quais abarcam a maioria das situações envolvendo as contratações públicas.

O cotejo do estabelecimento normativo entre as hipóteses de dispensa e de inexigibilidade de licitação permite-nos estabelecer, ao menos, uma certeza: a principal distinção entre ambas reside no grau de discricionariedade existente na decisão administrativa que opta por uma ou outra hipótese de contratação direta. Vejamos o seguinte posicionamento doutrinário:

A inexigibilidade é um conceito logicamente anterior ao da dispensa. Naquela, a licitação não é instaurada por inviabilidade de competição. Vale dizer, instaurar a licitação em caso de dispensa significa deixar de obter uma proposta inadequada. Na dispensa, a competição é viável e, teoricamente, a licitação poderia ser promovida. Não o é porque, diante das circunstâncias, a Lei reputa que a licitação poderia conduzir à seleção de solução que não seria a melhor, tendo em vista circunstâncias peculiares. Em suma, a inexigibilidade é uma imposição da realidade extranormativa, enquanto a dispensa é uma criação legislativa. Como decorrência direta, o elenco de causas de inexigibilidade contido na Lei tem cunho meramente exemplificativo. Já os casos de dispensa são exaustivos, o que não significa afirmar que todos se encontram na Lei 8.666/93. Outras leis existem, prevendo casos de dispensa de licitação. Como decorrência, a conclusão acerca da caracterização da inexigibilidade faz-se em momento logicamente anterior ao do reconhecimento da dispensa. Num primeiro momento, avalia-se se a competição é ou não viável. Se não o for, caracteriza-se a inexigibilidade. Se houver viabilidade de competição passa-se à verificação da existência de alguma hipótese de dispensa .

A inexigibilidade está relacionada, portanto, a uma impossibilidade de estabelecimento (viabilidade) do regime de competição, o que pode decorrer de situação fática estabelecida pelos mercados de fornecedores, pela vedação ético-profissional, por exemplo, ou por situações peculiares de uma determinada localidade, de um contexto de mercado que se impõe ao interesse da Administração Pública. Em tais casos, caracterizada a impossibilidade, e configurada a necessidade da contratação, teoricamente inexiste margem de liberdade para o agente, ressalvando o caso de não haver competição, mas de existirem diferentes fornecedores, situação em que seria viável optar por um deles, em caráter discricionário. O procedimento de dispensa deve partir do pressuposto de que é possível a realização do certame licitatório porquanto viável estabelecer o regime de competição, no entanto, em face da ocorrência de uma das circunstâncias de fato descritas na norma jurídica, no contexto e realidade da entidade administrativa, poderá atender (mais) aos postulados da Administração Pública a decisão de não realizar o certame, e sim de levar a efeito a contratação direta. Com relação à intensidade da discricionariedade e da vinculação existente entre ambas as hipóteses de contratação direta, a inexigibilidade afigura-se mais próxima da vinculação à impossibilidade fático-material de estabelecimento do regime de competição, sendo que a discricionariedade apenas seria verificável no momento em que o agente público optasse pela contratação de um entre diversos fornecedores ou prestadores de serviço (nas hipóteses, por exemplo, dos incs. II e III do art. 25). A dispensa de licitação, nesse contexto, possui maior intensidade na competência discricionária ante a possibilidade de, a um só tempo, mostrar-se juridicamente viável e legítimo realizar ou não realizar o procedimento; e grau de vinculação, nesta hipótese, se resume aos limites ou situações de dispensabilidade dos certames (de acordo com o art. 24).

Em síntese: a inexigibilidade constitui uma inviabilidade (material) cuja abertura conceitual determina a não realização do certame sob o enquadramento de situações não alinhadas taxativamente na lei, mas sempre fundamentadas na impossibilidade de competição, impondo-se ao administrador de forma vinculada, restringindo sua margem de decisão apenas com relação — quando isso se mostrar possível — ao contratado. A dispensa do procedimento de licitação, por sua vez, pressupõe uma maior margem de decisão ao agente, podendo ele optar ou não pela realização do certame, sendo que ambas as decisões, se atenderem aos postulados da lei, serão igualmente válidas.

O enfoque de nosso estudo privilegia, assim, o elemento (de natureza dos atos administrativos) de aproximação entre um e outro instituto: a discricionariedade administrativa e os limites de juridicidade para que o seu exercício seja legítimo.


Diferentemente do art. 24, o art. 25 não estabelece situações fechadas, taxativas, de caráter exaustivo, apenas referindo-se à regra geral da impossibilidade de licitar — prevista no caput — e às situações exemplificativas de seus incisos.

Quadra, para o presente estudo, a análise dos (assim definidos como) serviços técnicos especializados, os quais poderão ser contratados de acordo com o que determina a lei, na conjunção entre o art. 25, inc. II, e o art. 13. Para a realização das aludidas contratações constitui lugar comum, tanto no campo doutrinário quanto no jurisprudencial, afirmar a exigência conjugada dos seguintes requisitos: o objeto singular da contratação e a notória especialização do contratado. Acerca do primeiro requisito, assim se manifesta a doutrina:

a singularidade é relevante e um serviço deve ser havido como singular quando nele tem de interferir, como requisito de satisfatório atendimento da necessidade administrativa, um componente criativo de seu autor, envolvendo o estilo, o traço, a engenhosidade, a especial habilidade, a contribuição intelectual, artística, ou a argúcia de quem o executa, atributos, estes que são precisamente os que a Administração reputa convenientes e necessita para a satisfação do interesse público em causa .

A singularidade do objeto, portanto, diz respeito à existência de características individuais, próprias e específicas que o particularizem e o distingam:

notória especialização, para o efeito de exonerar a Administração de prévia contratação de serviços, tem como critério básico para a sua conceituação jurídica a singularidade do objeto, isto é, que a sua matéria ou teor estejam atribuídos de conotação peculiar .

Ainda que se trate de um objeto cuja natureza seja ordinária (como, por exemplo, uma ação judicial), a singularidade está em que a referida demanda se singulariza por versar sobre vultosas somas em recursos públicos ou ainda por tratar de questões jurídicas que exorbitam do conhecimento comum dos advogados, ou seja, por guardar peculiaridades distintivas das demais, naquela situação específica. O TCU, nesse particular, em alguns julgados, tem considerado irregular a contratação de escritórios de advocacia em face da ausência de demonstração da singularidade dos serviços a serem prestados (Decisão nº 80/98, 2ª Câmara, Ata nº 11/98, e Decisão nº 906/98, Ata nº 48/97). Em outros julgamentos (a exemplo da Decisão nº 167/99, Plenário, Ata nº 12/99), a contratação dos serviços de advocacia foi considerada regular em face de sua complexidade e característica singulares, sendo apontadas as seguintes regras para que ocorram as contratações:

1) a circunstância de entidade pública ou órgão governamental contar com quadro próprio de advogados não constitui impedimento legal a contratar advogado particular para prestar-lhe serviços específicos, desde que a natureza e as características de singularidade e complexidade desses serviços sejam de tal ordem que se evidencie não poderem ser normalmente executados pelos profissionais de seus próprios quadros, justificando-se portanto a contratação de pessoa cujo nível de especialização a recomende para a causa; 2) o exame da oportunidade e da conveniência de efetuar tal contratação compete ao administrador; a quem cabe analisar e decidir, diante da situação concreta de cada caso, se deve promover a contratação de profissional cujos conhecimentos, renome ou grau de especialização sejam essenciais para a defesa do interesse público que lhe cabe resguardar, e que não encontrem paralelo entre os advogados do quadro pessoal da entidade sob sua responsabilidade; 3) a contratação deve ser feita entre advogados pré-qualificados como os meios aptos a prestar os serviços especializados que se pretende obter; 4) a contratação deve ser celebrada estritamente para prestação de serviço específico e singular; não se justificando firmar contratos da espécie visando a prestação de tais serviços de forma continuada .

Quanto à notoriedade de especialização do contratado, segundo requisito para viabilizar a contratação pelo procedimento de inexigibilidade de licitação, preceitua a doutrina:

diz-se notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito, no campo de sua especialidade, decorra do desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou de outros requisitos relacionados com sua atividade, permitindo inferir que seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto contratado. A expressão indiscutivelmente, que figura no conceito, aliada a essencial, contribui para tornar a notoriedade ‘avis rara’, retirando-lhe o uso correto, e frequente que a caracterizava durante a vigência do Decreto-lei 2.300/86 .

A doutrina e, posteriormente, a jurisprudência, têm agregado ao requisito da notoriedade o aspecto da confiabilidade, a ser considerado nessa hipótese de inexigibilidade:

Permanecem alguns Tribunais de Contas a sustentar que apenas se manifesta notória especialização quando inexistam outras empresas ou pessoas capazes de prestar os mesmos serviços, além daquela à qual se pretenda atribuir aludida qualificação. Entendo, não obstante, que ‘serviços técnicos profissionais especializados’ são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contratado de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, a Administração, deposite na especialização desse contratado. É isso, exatamente isso, o que diz o direito positivo (…). Vale dizer: nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo, logo, a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços — procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo — é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato. (…). A presença dos requisitos de notória especialização e confiança, ao lado do relevo do trabalho a ser contratado, que encontram respaldo na inequívoca prova documental trazida, permite concluir, no caso, pela inexigibilidade de licitação (…). — STF, HC 86.198-8/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., DJU 29.6.07” .

Sob tais circunstâncias, é possível concluir que nem toda contratação de parecer jurídico torna inexigível o procedimento licitatório; nem toda demanda ordinária, a priori comum, exige a contratação de advogados por meio de licitação, se estiverem presentes os requisitos da singularidade do objeto e da notoriedade da especialização do contratado.

Possível perceber, assim, que o exercício da função discricionária pelo agente público no que diz respeito aos procedimentos de dispensa e de inexigibilidade de licitação é elemento que identifica (e aproxima) ambas as hipóteses de contratação direta. Em essência, a análise acerca da substancialidade dessas contratações em nada difere em ambos os casos, ocorrendo o controle sobre os atos administrativos que fundamentam as contratações diretas a partir dos mesmos paradigmas, sob o influxo dos mesmos princípios, apenas sofrendo a modulação de regras específicas (dos arts. 24 e 25).

Daí por que a questão se cinge, também aqui, em explorar em que grau e medida essa discricionariedade será legítima para não implicar a violação do disposto no art. 89 da LLC ou no art. 10, inc. VIII, da LIA.


1.3. Da inexigibilidade indevida de licitação: entre a ilegalidade e o ato de improbidade administrativa

Da mesma forma que se reputa antijurídica a contratação pelo procedimento de dispensa (fora das hipóteses do art. 24), quando verificada a viabilidade de competição, por qualquer dos motivos que a ensejam, verifica-se a ocorrência da infração disciplinada no mesmo dispositivo tipificado na LIA. A ideia-base, identificada quando da análise do procedimento de dispensa de licitação, é de que para a configuração do ato de improbidade administrativa não basta a mera ocorrência de ilegalidade ; em outras palavras, verificada a ocorrência da contratação direta — fundamentada na inexigência de licitação — sem que haja a efetiva demonstração de inviabilidade de competição, não necessariamente configurado estará o ato de improbidade administrativa. É preciso, assim, reconhecer que o procedimento de contratação direta viciado está em sua origem quando estabelecida a vantagem (ilegítima) ou direta para o agente que conduz o mesmo ou para o contratado, em detrimento dos postulados que determinam as licitações públicas como expressões dos princípios da isonomia e da vantajosidade. Isso porque, consoante tem aduzido a doutrina,

reduzir a noção de ato ímprobo à de ato inválido, porém, não é a melhor orientação a seguir. É certo que todo ato ímprobo é inválido, mas nem todo ato que tenha vício de validade configura improbidade administrativa. E prossegue: As severas penas previstas na Constituição para aqueles que praticam ato de improbidade (art. 37, § 4°) já conduzem à conclusão de que ato de improbidade não é uma simples violação da ordem jurídica. A moralidade administrativa, para fins de probidade, não pode ser considerada como sinônimo de legalidade. Para que um ato possa ser considerado como ímprobo deve contrariar o ordenamento jurídico em condição especial; deve ofender a moralidade administrativa. É preciso a vontade positiva do agente administrativo de incorrer na ilicitude; o agente deve ter o propósito de alcançar objetivo vedado pelo direito; é preciso que esteja caracterizado o móvel de alcançar resultados contrários à moralidade .

A questão cinge-se, antes de tudo, em delimitar o próprio conceito de improbidade administrativa, tendo em vista a estreita (porém, distinta) relação jurídica estabelecida entre os princípios da legalidade e da probidade administrativa, pois, segundo a doutrina:

pode-se, pois, conceituar improbidade administrativa como espécie do gênero imoralidade administrativa, qualificada pela desonestidade de conduta do agente público, mediante a qual este se enriquece ilicitamente, obtém vantagem indevida, para si ou para outrem, ou causa dano ao erário .

Assim, é preciso assentar, ainda uma vez, a premissa segundo a qual a mera conduta em desacordo com a lei não configura o ato de improbidade administrativa, pois classificar como improbidade toda e qualquer conduta ilegal nesse quadro seria generalizar, indevidamente, as consequências de preceito constitucional restritivo e, mais que isso, qualificativo de determinadas condutas e comportamentos, violando diretamente o texto maior (§ 4° do art. 37). Na síntese de FREITAS:

a probidade é subprincípio de notável significação jurídica e política: o ato ímprobo não é um ato somente ilegal, mas antijurídico. E mais: de antijuridicidade agravada, por assim dizer, pela intenção inequivocadamente desonesta. Eis a tônica do ato ímprobo .

Ímproba será a conduta, portanto, qualificada pelo elemento de má-fé, caracterizado pela desonestidade, pela imoralidade do agente no trato ou exercício do cargo ou função pública, particularmente, de acordo com o que tem assentado a jurisprudência superior .

É claro que a abertura conceitual do art. 25, aliada à possibilidade de atendimento meramente formal aos ditames da LLC, facilita a contratação ilegal e a prática de atos de improbidade administrativa dessa natureza; no entanto, a conformação de um procedimento de contratação direta ajustado aos postulados da lei, consoante defendido aqui, conduz à possibilidade de ampliação do controle legítimo da contratação pública, reduzindo os danos que dela possam advir.

2. A natureza dos serviços advocatícios e a possibilidade (legítima) de “terceirização”

A hipótese evolvendo a contratação (ou terceirização) de serviços advocatícios não dispensa alguns comentários prévios. Em primeiro lugar, é preciso destacar que a advocacia pública, exercida por servidores de carreira, dotados de todas as garantias previstas na Constituição e nos regimes estatutários próprios, deve ser favorecida; e, para além disso, ter seu desempenho acrescido com auxílio da terceirização, por exemplo, quando o movimento pela contratação do terceirizado se dá em função da necessidade de agregar-se conhecimento técnico científico à atividade desenvolvida pelo quadro de procuradores. Considere-se igualmente válida, em um segundo momento, a situação em que a contratação é direcionada para possibilitar a diminuição de custos para a entidade administrativa, o que pode ser demonstrado a partir de documentação contábil necessária a tanto. Segundo JUSTEN FILHO, o movimento natural no âmbito da Administração Pública é de natureza endógena, é dizer, deve voltar-se para o quadro próprio de advogados para a solução dos seus problemas jurídicos. No entanto, a valorização do quadro próprio de advogados celetistas ou estatutários, de caráter permanente vinculados à instituição, não invalida a possibilidade de terceirização dos serviços ou de parcela dos serviços advocatícios, pois

a decisão de terceirização reflete uma avaliação fundada em critérios de economicidade. A manutenção de quadro permanente de advogados pode gerar custos muito mais elevados do que a contratação de escritórios externos. Por outro lado, pode haver situações em que exijam profissionais altamente qualificados, que não se disponham a se vincular de modo permanente e continuo a entidade administrativa .

A inexigibilidade para a contratação dos serviços advocatícios se insere no âmbito daqueles designados serviços técnicos profissionais especializados, de acordo com o art. 13, inc. V. São eles:

I – estudos técnicos, planejamentos e projetos básicos ou executivos;
II – pareceres, perícias e avaliações em geral;
III – assessorias ou consultorias técnicas e auditorias financeiras ou tributárias;
IV – fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras ou serviços;
V – patrocínio ou defesa de causas judiciais ou administrativas;
VI – treinamento e aperfeiçoamento de pessoal;
VII – restauração de obras de arte e bens de valor histórico.

Como se pode ver, no rol dos serviços ali descritos, a prestação de serviços advocatícios, compreendendo o patrocínio de causas de natureza judiciais ou administrativas em favor dos entes públicos, está incluída entre os serviços técnicos. Por outro lado, preceitua o art. 25 da citada Lei:

Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
II – para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
§ 1o Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato.

Pelo cotejo dos dispositivos, é perceptível que, do ponto de vista jurídico, em atendimento aos princípios que norteiam as licitações públicas, a priori, a contratação direta de serviços advocatícios sob o fundamento da inexigibilidade de licitação não se mostra antijurídica (tampouco antieconômica). Na precisa lição de BANDEIRA DE MELLO:

Em face do inciso II do art. 13 (contratação de profissional de notória especialização), pode-se propor a seguinte indagação: basta que o serviço esteja arrolado entre os previstos no art. 13 e que o profissional ou empresa sejam notoriamente especializados para que se configure a inexigibilidade da licitação, ou é necessário algo mais, isto é, que nele sobreleve a importância de sua natureza singular? Parece-nos certo que, para compor-se a inexigibilidade concernente a serviços arrolados no art. 13, cumpre tratar-se de serviço cuja singularidade seja relevante para a Administração (e que o contratado possua notória especialização). Se assim não fosse, inexistiria razão para a lei haver mencionado ‘de natureza singular’, logo após a referência feita aos serviços arrolados no art. 13. Se o serviço pretendido for banal, corriqueiro, singelo, e, por isto, irrelevante que seja prestado por “A” ou por “B”, não haveria razão alguma para postergar-se o instituto da licitação. Pois é claro que a singularidade só terá ressonância para o tema na medida em que seja necessária, isto é, em que por força dela caiba esperar melhor satisfação do interesse administrativo a ser provido. Veja-se: o patrocínio de uma causa em juízo está arrolado entre os serviços técnico-especializados previstos no art. 13. Entretanto, para mover simples execuções fiscais a Administração não terá necessidade alguma de contratar — e diretamente — um profissional de notória especialização. Seria um absurdo se o fizesse. Assim também, haverá perícias, avaliações ou projetos de tal modo singelos e às vezes até mesmo padronizados que, ou não haveria espaço para ingresso de componente pessoal do autor, ou manifestar-se-ia em aspectos irrelevantes e por isto incapazes de interferir com o resultado do serviço .

Não há justificativa, salvo de conteúdo meramente econômico, para que a contratação direta de serviços advocatícios ocorra para o patrocínio de causas repetitivas e sem relevância especial. Necessário seria que tal causa fosse de uma singularidade, de uma complexidade tal que exigisse a contratação de um advogado ou de uma banca de advogados de renome, com notoriedade ou comprovada especialização na área de atuação.

Assim, verificada situação anômala, ou ainda a necessidade de, por exemplo, redução de custos de uma procuradoria, a Administração pode optar pela terceirização, hipótese em que deverá decidir pela realização de certame licitatório, por exemplo. Consideremos, no esquadro dos princípios públicos, que, se a situação fática for a de reduzir custos de uma procuradoria e transferir o patrocínio de causas de natureza singela, a exemplo de execuções fiscais, não há liberdade para inexigir procedimento licitatório; porém, há certa margem de discricionariedade para dispensá-lo em razão do valor ou realizar o procedimento licitatório em uma de suas modalidades. De outro modo, se se tratasse de uma causa de natureza singular, que demandasse a contratação de um profissional diferenciado, de comprovada notoriedade e conhecimento técnico invulgar, ante a complexidade da questão jurídica, em tese, ainda assim, poder-se-ia cogitar da realização de um procedimento licitatório (na modalidade técnica e preço) que envolvesse escritórios de advocacia ou de contratação direta por inexigibilidade de um escritório capitaneado por notório especialista. Nesses casos é possível notar que o grau de discricionariedade para realizar a licitação e para inexigir o procedimento, aqui, ocorre, coincidentemente, na mesma medida. Formalmente, as hipóteses dos arts. 24 e 25 da LLC são bastante distintas, consoante já foi demonstrado; no entanto, sob o aspecto de sua natureza, encontramos, apenas, alguma semelhança no que se refere ao fato de que, em um dado momento, no exercício da função administrativa, se vai alinhar aos preceitos da competência discricionária.

Nos termos demonstrados, a análise dos dispositivos conjugados dos arts. 13 e 25, inc. II, somente é inexigível quando o serviço for de natureza singular. Assim, para que a contratação seja admitida pelos Tribunais de Contas e pelo Poder Judiciário, de acordo com a doutrina, “não basta tratar-se de um dos serviços previstos no artigo 13; necessário que a complexidade, a relevância, os interesses públicos em jogo tornem o serviço singular, de modo a exigir a contratação com profissional notoriamente especializado”.

Igualmente, segundo entendimento doutrinário, é suficiente reconhecer que o objeto da contratação seja diverso daquele normalmente executado pelos profissionais que integram os quadros da Administração; é necessário, ao contrário, demonstrar se tratar de profissional cuja qualidade exorbita da vulgaridade do trabalho técnico, apto, portanto, ao enfrentamento do problema, a priori, com distinção invulgar . O entendimento mais corrente a respeito da questão induz à conclusão de que somente os serviços advocatícios dotados de singularidade e que exijam profissionais de notória especialização serão passíveis de contratação direta, por se enquadrarem em uma das modalidades de inexigibilidade de licitação. Para os demais serviços advocatícios, o Poder Público deverá se valer de quadro próprio de advogados, contratados por meio de concurso público, ou ainda poderá estabelecer, se assim for o caso, procedimento licitatório formal, que, no entanto, deverá guardar compatibilidade com a natureza da profissão.

É preciso não descurar, inicialmente, que a implantação do procedimento licitatório pressupõe a possibilidade do estabelecimento do regime de competição entre potenciais competidores em igualdade de condições para o oferecimento de propostas de prestação de serviços ou fornecimento de bens. No entanto, algumas atividades profissionais, norteadas por seus princípios ético-profissionais, como é o caso dos médicos, e, mais especificamente, dos advogados, têm, em sua base, limites rígidos de atuação, a partir dos quais a competição, por exemplo, apresenta-se como atividade muitas vezes vedada, em especial quando se estabelece, como é o caso dos procedimentos licitatórios, a prática de lances de menor preço, por exemplo .

Some-se a isso o fato de que a advocacia, por natureza, é uma atividade caracterizada pelo exercício pessoal, ainda que, na prática, muitas vezes, esse aspecto seja de difícil constatação. A advocacia não se exerce dissociada da pessoa do advogado. Tanto é assim que o CED da OAB, em seu art. 15, obriga que o mandato seja outorgado individualmente aos advogados, mesmo quando reunidos em sociedade. Nesse rumo, surge uma aparente incompatibilidade do procedimento licitatório estabelecido na Lei 8.666/93 com a disciplina profissional dos advogados. É justamente essa incompatibilidade que fundamenta alegações no sentido de que todo e qualquer serviço advocatício seria de natureza singular, justificando, destarte, a sua contratação direta. Para essa corrente, a advocacia estaria impregnada de engenho e arte profissionais, o que caracterizaria uma atividade dotada de singularidade subjetiva .

A tese da singularidade subjetiva foi adotada pelo STF para fundamentar a inexigibilidade de licitação para a contratação de advogados em diversos precedentes, em ações penais, entre os quais se destacam os seguintes: HC 86198/PR, Min. Sepúlveda Pertence; HC 72830/RO . Ainda que se tenha tal entendimento no âmbito da jurisprudência do STF, multiplicam-se as demandas judiciais (ações de improbidade, ações populares e ações penais) e os apontamentos pelos Tribunais de Contas por decorrência da contratação direta de escritórios de advocacia, conforme aponta a doutrina:

Tais iniciativas são movidas por três raciocínios, todos aviltantes à profissão. Um, há a aversão à advocacia liberal, autônoma e independente. Nesta linha de pensar, são freqüentes os posicionamentos que querem interditar que o Estado contrate a prestação de serviços jurídicos de profissionais que com ele não possuam vínculo empregatício ou funcional. É o que chamo da ideologia da exclusividade da carreira pública, que se adotada acabaria por impedir que a Administração conte, em temas específicos e complexos, com os melhores especialistas. Dois, há o viés de desqualificar a advocacia como um afazer impregnado do engenho e arte profissional. É o que chamo de tentativa de redução da advocacia a uma prestação vulgar, um bem fungível, uma atividade sem maiores predicados. Três, o mais ardiloso dos móveis, há a tendência ao processo de retaliação contra a atuação do advogado. São cada vez mais comuns os processos ajuizados por quem, atuando como parte numa ação civil pública ou numa ação de improbidade, se depara com um profissional aguerrido e, inconformado com a renhida demanda, retalha o profissional questionando os fundamentos de sua contratação .

Segundo parcela da doutrina, há uma clara incompatibilidade entre o dever de licitar e a contratação de advogados , tendo em vista a natureza da atividade desenvolvida pelo profissional advogado, como também a legislação profissional. Parece-nos, no entanto, equivocado dizer que em qualquer caso descabe a contratação de advogados por intermédio de procedimento licitatório, pois o procedimento licitatório da modalidade “melhor técnica”, ao contrário da modalidade “pregão” ou “menor preço”, por exemplo, privilegia, evidentemente, aspectos relacionados à capacidade objetivamente aferível do profissional, de um grupo de profissionais ou de uma banca de advogados .

Certo, o elemento caracterizador para a contratação direta por procedimento de inexigibilidade será a natureza singular do serviço a ser prestado ou a existência de elementos capazes de tornar uma causa, em tese, vulgar, em um contrato diferenciado, necessitando o trato invulgar da matéria por profissional altamente especializado. Dessa forma, serviços advocatícios comuns objetivados em contratação direta quando a causa não exija especialidade para sua condução podem ser considerados ilegais e constituir na prática delitiva prevista em lei. De outro lado, sempre que não se tenha um serviço singular — e que qualquer profissional em condições normais for capaz de prestar o serviço em questão — não será viável o procedimento de contratação direta, pois nem a Constituição nem a lei permitem que atividade absolutamente comum seja objeto de contratação direta (salvo nas situações de dispensa em razão do custo econômico da licitação, urgência ou em função da pessoa jurídica contrata, licitação deserta) segundo critérios subjetivos (discricionariedade).

Da mesma forma, não é possível afirmar que todo serviço singular a priori inexige licitação, sendo possível estabelecer o procedimento até mesmo entre escritórios de alto nível técnico sem violar os princípios ético-profissionais.


3. A análise da contratação direta de escritórios de advocacia do ponto de vista substancial a partir da jurisprudência do STF

Como vimos, no presente artigo, inúmeras são as divergências a respeito do modo de aplicação das regras da LLC à contratação de escritórios de advocacia para a prestação de serviços à Administração Pública. A análise aqui proposta, ao fim e ao cabo, busca equacionar o problema, ressaltando que o STF, a partir de uma interpretação, na medida adequada, substancial — e consequencialista — das contratações diretas de advogados, destaca os princípios que devem nortear a atividade nas licitações públicas.

O primeiro precedente é o RHC 72830/ RO, de relatoria do Min. Carlos Velloso. A hipótese dos autos versava sobre a contratação de um advogado, sem licitação, para defesa do Estado de Rondônia perante os Tribunais Superiores. O Tribunal de Contas daquele Estado declarou ilegal a contratação, por ofensa à LLC; argumentos de fato e de direito que levaram o Procurador de Justiça em atuação perante aquele órgão a oferecer a denúncia.

No voto condutor do julgado, deixando à margem do debate as questões formais atinentes à formatação da aludida contratação direta, o ministro relator deu início à sua análise apontando dois elementos (também destacados pelo MP junto àquela Corte), a saber: (i.) a verificação de que os valores dos honorários pactuados não foram fixados em patamar exorbitante; (ii.) a cogitação, entre os contratantes, de que a remuneração fosse revertida para a Administração Pública. Ultrapassando tais questões iniciais, o voto condutor do julgado passou a utilizar indistintamente o termo dispensa de licitação, isto é, sem tratar do tema a partir da conceituação básica encetada no art. 24 da LLC. Foi assentada, assim, a premissa de que a atividade desenvolvida por profissional advogado, em razão de sua natureza (intelectual), dispensa o procedimento de licitação, não podendo ser ela aferida em procedimento para verificação de ofertas de preço mais baixo. Na oportunidade, o julgador entendeu que a contratação de profissional advogado

dispensa licitação, dado que a matéria exige, inclusive, especialização, certo que se trata de trabalho intelectual, impossível de ser aferido em termos de preço mais baixo. Nesta linha, o trabalho de um médico operador. Imagine-se a abertura de licitação para a contratação de um médico cirurgião para a realização de uma cirurgia num servidor. Esse absurdo somente seria admissível numa sociedade que não sabe conceituar valores. O mesmo pode ser dito em relação ao advogado, que tem por missão defender interesses do Estado, que tem por missão, a defesa da res publica .

Na sequência, o relator entendeu que a existência de irregularidades não importa na consolidação de infrações criminais, por ausência de comprovação do elemento doloso na prática delituosa, até porque a premissa do julgador é a de que a singularidade do objeto inexige (ainda que utilize o termo dispensa) a licitação. Ou seja, deixou-se de lado no aludido julgamento a análise formal de descumprimento dos preceitos e regras públicas (e, portanto, a ilegalidade sob o aspecto cível e administrativo), para verificar que foi demonstrada substancialmente a possibilidade de celebração do ajuste. No voto, também, e de modo expresso, o relator refere que “as irregularidades apontadas pelo Tribunal de Contas não chegam a tipificar conduta delituosa”, considerando, também “que os honorários foram modicamente arbitrados e os serviços efetivamente prestados, serviços que resultaram em benefício para o Estado”.

Verifica-se, no voto condutor do julgado, que a distinção existente entre os conceitos jurídicos de dispensa e inexigibilidade de licitação não foram considerados para fins de enquadramento das condutas nos tipos penais, sendo utilizados indistintamente. Preponderou, pelo que se vê, o entendimento acerca da natureza jurídica dos serviços advocatícios e suas características próprias, capazes de afastar, para fins penais, o enquadramento de condutas a priori típicas. Segundo o relator, portanto, os serviços advocatícios guardariam peculiaridades ínsitas e capazes de determinar o que se assemelha a uma impossibilidade a priori de não submissão à concorrência pública.

Na linha do precedente citado, o STF, sendo a relatoria do Min. Eros Grau, AP 348-5, DJU 03.08.2007, TP, decidiu pela atipicidade de conduta que, em tese, poderia enquadrar-se no tipo penal do art. 89 da LLC. Segundo a acusação, reforçava a tese da prática delituosa a violação ao princípio da impessoalidade, aduzindo que o elemento subjetivo da escolha do advogado teria o condão de reforçar o argumento da prática delituosa. O voto condutor, da lavra do Min. Eros Grau, buscou no Direito Administrativo e em argumentos de hermenêutica jurídica aplicada a solução para o caso, estabelecendo, para tanto, duas premissas que, segundo aduz, devem alinhar-se na resolução de tais casos: (i.) a contratação de advogado se insere no âmbito de atividade de natureza subjetiva, baseada fortemente na questão da confiança, sendo que tal análise, nas contratações públicas, com exclusividade, é inerente ao agente público responsável pelo ajuste; (ii.) a subjetividade da escolha, baseada na confiança, afasta a objetividade, característica inafastável dos certames públicos (princípio da objetividade do julgamento); e (iii.) a notória especialização do contratado. Para o ministro relator, “o crime tipificado no artigo 89 da Lei n. 8.666/63 só se configura se ocorrer o seu antecedente lógico, isto é, o ilícito administrativo”. Estabelece, assim, que a natureza da atividade em si permite enquadrar a contratação na hipótese de inexigibilidade de licitação, reforçando o entendimento de que a escolha (discricionariedade) para entabulação do ajuste é de competência exclusiva do agente público, âmbito em que é defeso ao Poder Judiciário imiscuir-se.

O ministro, nessa linha de argumentação, ponderou, contrariando o entendimento consolidado no âmbito dos Tribunais de Contas, que “‘os serviços técnicos profissionais especializados’ são serviços que a Administração deve contratar sem licitação, escolhendo o contrato de acordo, em última instância, com o grau de confiança que ela própria, a Administração, deposite na especialização desse contratado”. Vale dizer: “nesses casos, o requisito da confiança da Administração em quem deseje contratar é subjetivo. Daí que a realização de procedimento licitatório para a contratação de tais serviços — procedimento regido, entre outros, pelo princípio do julgamento objetivo — é incompatível com a atribuição de exercício de subjetividade que o direito positivo confere à Administração para a escolha do ‘trabalho essencial e indiscutivelmente mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato’ (cf. o §1º do art. 25 da Lei 8.666/93)”.

Na mesma linha de argumentação, inclusive com expressa adesão aos argumentos, em parte colacionados do precedente citado, foi o voto condutor do HC 86.198/PR, de 29.6.07, de relatoria do Min. Sepúlveda Pertence. Tratava-se, na espécie, de contratação de advogados para a venda de áreas públicas, tendo sido levada a efeito denúncia pela prática dos crimes previstos nos arts. 89 e 92 da LLC, por entender-se que não se faziam presentes os pressupostos que autorizam a contratação direta por inexigibilidade de licitação, notadamente em função da ausência de comprovação da singularidade do objeto do ajuste administrativo. Aduziu o ministro relator, para afastar o julgamento do TJPR e da acusação, que “de fato, é a associação desses dois elementos (notória especialização e confiança) — ao lado, é claro, do relevo do trabalho a ser contratado — que permitirá concluir pela inexigibilidade da licitação”. Na conclusão do voto, o ministro apontou para as circunstâncias que corroboram a tese de absolvição a partir da natureza dos serviços advocatícios, aduzindo reconhecer “a extrema dificuldade da licitação de serviços de advocacia, dada a série de empecilhos que a ética profissional do advogado, em particular – e dos profissionais liberais em geral —, veda o que o Estatuto da OAB chama — pelo menos no meu tempo chamava (L. 4.215/63, art.83) —, de qualquer atitude tendente à ‘captação de clientela’”. E, por fim, arremata: “se é para oferecer antes um trabalho profissional para que, entre os concorrentes, a administração escolha um, seria uma licitação paradoxal: ela começaria pela execução do trabalho. Se for para disputar preço, parece de todo incompatível com as limitações éticas e mesmo legais que a disciplina e a tradição da advocacia trazem para o profissional”.

O raciocínio jurídico empregado para a solução das causas criminais em apreço, que envolvem o crime de (fora dos casos previstos na LCC) contratar advogados para a condução de processos, denota importância para os seguintes elementos: (i.) ausência de dano ao erário; (ii.) natureza dos serviços contratados; e (iii.) legitimidade da escolha do profissional (a discricionariedade administrativa e a questão da confiança). Tais argumentos, entretanto, não são colhidos de uma análise meramente formal dos textos jurídicos que possibilitam levar a efeito tais contratações e muito menos do entendimento amplamente difundido pelos Tribunais de Contas.

Não obstante o avanço de posições adotadas em casos concretos, não há unanimidade sobre o tema na Corte Suprema. Atualmente, tramitam no STF a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n° 45 e o Recurso Extraordinário 656.558, com repercussão geral reconhecida, com um único voto até agora proferido pelo relator do caso, Min. Dias Tóffoli:

no caso especial da advocacia, dada a série de empecilhos impostos pela essência da profissão, norteada pela ética profissional, torna-se latente a dificuldade de se proceder ao procedimento licitatório para a contratação desses serviços. Aliás, dispõe o art. 34, IV, do Estatuto dos Advogados, a Lei 8.906/94, que constitui infração disciplinar ‘angariar ou captar causas, com ou sem intervenção de terceiros’. (…). A vedação de condutas tendentes à captação de clientela também está contida expressamente no art. 7° do Código de Ética e Disciplinar da OAB. (…). Considero, ainda ser de todo incompatível com as limitações éticas e legais a disputa pelo preço”.

Na citada ADC n° 45, a AGU manifestou-se favorável à contratação direta de escritórios de advocacia, com a ressalva de que não seria a única forma de contratação o procedimento de inexigibilidade, por entender que nem todos os serviços de advocacia são singulares.


O Conselho Nacional do MP, por sua vez, publicou a Recomendação n° 36, de 14 de junho de 2016, que externa as seguintes diretrizes:

A contratação direta de advogado ou escritório de advocacia por ente público, por inexigibilidade de licitação, por si só, não constitui ato ilícito ou improbo, pelo que recomenda aos membros do MP que, caso entenda irregular a contratação, descreva na eventual ação a ser proposta o descumprimento dos requisitos da Lei de Licitação (…).

Os posicionamentos das duas instituições, como se vê, estão amparados em visão mais substancialista de aplicação das regras jurídicas em comento, alinhando-se ao conjunto mais robusto de julgamentos do STF, conquanto ainda não se possa tomar por pacífica e indene às controversas o tema, seja porque pende de julgamento tanto a ADC referida quanto às múltiplas ações em tramitação perante a Corte Suprema (em número maior de cem, segundo noticia a imprensa ).

Considerações finais

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Os diversos modos de interpretar uma norma jurídica, a partir do regime em que ela se contextualiza, não permitem, de modo estanque, afastar matizes diferentes, princípios que, na integração do Direito, permitem que seja atingido o telos do sistema jurídico em sua totalidade.

No curso do tempo, a jurisprudência superior tem demonstrado que o conteúdo material (substancial) das normas jurídicas se sobrepuja aos alinhamentos formais a elas inerentes, de tal modo que se permite integrar conteúdos, preservando as unidades indispensáveis (princípios), objetivando uma aplicação mais alinhada com os desideratos constitucionais do Estado democrático de Direito. Uma análise que se quer substancial das regras incidentes sobre as potenciais ilegalidades (e, por vezes, tipificadas como crimes) inerentes aos certames públicos, sem prejuízo da boa aplicabilidade do conjunto de princípios e regras que conformam regime licitatório, busca, justamente, tonificar aquilo que de mais importante a LLC estabelece (em confluência com a CF): os princípios reitores do regime jurídico-administrativo, no contexto constitucional.

A interpretação calcada nos critérios substanciais em matéria de contratações públicas para prestação de serviços de advocacia atende, a um só tempo, aos postulados reitores da Administração Pública e àqueles que disciplinam o exercício da advocacia no contexto de função essencial à Justiça; e, mais que isso, como função indispensável ao Estado democrático de Direito na manutenção de garantias e direitos fundamentais.

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