TESTEMUNHO

O JÚRI E A REFORMATIO IN PEJUS
15/08/2018
X Jornada Lia Pires
21/08/2018

Por

Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira

Seu nome, Oswaldo de Lia Pires, conhecido, admirado e respeitado por todos os de nosso meio, aqui na Província do Rio Grande. Para a família, o centro. Como amigo, exemplar. Como professor e profissional do direito, ímpar e inimitável. Como intelectual, primoroso. Suas ideias e seus princípios, revestidos pela exatidão lógica. Sua palavra, clara, exata, certeira, inquestionável, incontestável, onde quer que fosse ouvida. Impossível vencer esse grande advogado tanto na sociedade, como no trato com as pessoas, na discussão sobre verdades, na defesa de suas opiniões, de seus entendimentos, de seus julgamentos, de suas convicções, de seus argumentos notadamente perante os órgãos da Justiça. O nome Oswaldo de Lia Pires foi e será uma legenda.

O homem deixou lições e mais lições mostrando como o advogado deve se orientar na defesa da causa. Sempre teve objetivos claros, mostrando a linha da vitória. Quando alguma sentença ou decisão não lhe fosse favorável, os argumentos terçados no curso do processo continuavam vivos e instigantes, tal a força e a primorosa lógica com que os defendia, permanecendo como uma espinha incômoda na garganta de quem o contrariasse.

Inúmeras foram as causas de grande repercussão que o consagraram. Também nos casos mais simples, mais comuns, ao abraçá-los, demonstrava sua preocupação em salvar a honra, a privacidade, a liberdade, e até o convívio social de seus clientes. Para ele, todas as causas eram importantes, em todos os seus momentos e em todas as etapas. Era atento e cuidadoso desde quando procurado pela parte, desde a investigação policial ou a abertura de inquéritos administrativos, bem como no desenvolvimento dos processos criminais e cíveis. Batalhava no primeiro grau jurisdicional, no andamento recursal, e até o final da causa com o advento do trânsito em julgado. Seguia além, na luta pela revisão do processo.

Lembro um caso, como tantos outros, de atropelamento com morte de um ciclista sobre uma ponte no interior do estado em que o promotor de justiça ofereceu denúncia capitulando o fato como homicídio com dolo eventual. A denúncia foi recebida e, após o andamento do processo, o advogado da causa pede a desclassificação para crime culposo. Mantida a classificação inicial na pronúncia pelo magistrado, houve interposição do recurso cabível, tendo a câmara julgadora desclassificado o fato para homicídio culposo. Na nova sentença o juiz condenou o motorista segundo a nova capitulação. Recorreu o advogado da comarca interiorana, mas ante a repercussão do fato na cidade, entendeu de substabelecer a causa para Oswaldo de Lia Pires, na véspera do julgamento. O novo patrono não teve possibilidade sequer de apresentar memorial aos julgadores.

Com aquela dedicação proverbial, Lia Pires debruçou-se sobre o processo com o ardor defensivo de sempre e concluiu que o acusado não poderia ter sido condenado.


Persuadido do erro da decisão apelada, dirigiu-se para o tribunal, trajado adequadamente, com aquele perfume que o caracterizava (do qual ninguém sabia a marca nem a origem), mas com a fisionomia séria, característica da responsabilidade com que abraçava todas as causas a ele confiadas. No entanto, tudo conspirava contra a pretensão absolutória, inclusive um belo parecer do procurador de justiça. E fez a sustentação oral.

Demonstrou os elementos e as circunstâncias do fato a principiar pela velocidade que o acusado imprimia a seu veículo, dentro das normas do trânsito. A seguir, passou ao exame do levantamento fotográfico e topográfico, com o croqui completo da ponte, do local da colisão e a demonstração de que o ponto de impacto se dera na faixa de rolamento em que vinha o carro do acusado e por onde também, supunha-se, viesse se deslocando o ciclista, à frente do veículo maior. Portanto, o motorista tinha a obrigação de respeitar a marcha do ciclista e não atropelá-lo. A presunção era de que ambos se deslocavam pela ponte no mesmo sentido. Nisso residia a culpa.

Lia Pires argumentou que o fato não era tão simples. Pelas fotografias, demonstrou que o carro batera na bicicleta em seu lado direito, não se podendo concluir que a vítima se deslocava no mesmo sentido do carro, pois a parte traseira do pequeno veículo estava intacta. O ponto de maior incidência da batida dera-se do quadro, isto é, do meio da bicicleta para frente, tendo danificado completamente o rodado dianteiro, inclusive o pneu, e o guidão. A vítima tinha sido projetada sobre essa parte dianteira, caindo na frente do carro com impacto da cabeça no asfalto.

A necropsia constatou fratura no crânio, atingindo a massa cerebral, como resultado mais importante e manifestamente letal, decorrente da batida da cabeça, lado esquerdo, com impacto no asfalto da ponte. Além dessa lesão, havia outras fraturas, expostas, atingindo a tíbia e o perônio (fíbula) da perna direita. Constataram-se, ainda, lesões epidérmicas decorrentes da queda do corpo com raspagem no asfalto, para onde fora projetado com o impacto, (braço, antebraço, coxa e perna), em sua maioria no lado esquerdo do corpo, isto é, no mesmo lado da fratura do crânio.

Ao fazer a sustentação oral perante a câmara julgadora, demonstrou o que realmente tinha ocorrido, com muito mais base fática do que constara da denúncia, da versão acusatória e da fundamentação da sentença.


Ademais, não havia nenhuma prova testemunhal que demonstrasse estaria a vítima pedalando à frente do carro. Na verdade, a bicicleta vinha na faixa de rolamento contrária à do carro ou pelo centro da ponte, tendo feito uma inflexão brusca para a esquerda, circunstância que acabou proporcionando a colisão com o carro na pista em que este vinha se deslocando sobre a ponte.

O que não se podia negar era a inflexão da bicicleta. O ponto de impacto do carro sobre e veículo de tração humana deu-se do quadro para frente, como constou da perícia. Isto é, sobre seu lado direito, sendo o corpo do ciclista projetado sobre o guidão, com impacto da cabeça, lado esquerdo, contra o asfalto, bem como a fratura exposta da tíbia e perônio da perna direita. Tais elementos demonstravam a batida contra o lado direito do corpo da vítima. As demais lesões (crânio e escoriações) decorreram da projeção do corpo da vítima, em seu lado esquerdo, contra o asfalto. Ademais, a inflexão para a esquerda em direção ao carro, cuja causa não ficara plenamente demonstrada, era a única explicação possível para os danos na bicicleta (do quadro para frente) e no corpo da vítima, com fratura exposta da tíbia e perônio da perna direita.

Assim, o motorista do automóvel foi surpreendido com a vinda imprevisível do ciclista em sua direção, tornando inevitável a colisão. Essa inflexão, cuja origem não se explicou, somente poderia ter decorrido ou de um mal súbito da vítima ou, com mais probabilidade, em decorrência de estouro ou esvaziamento súbito do pneu dianteiro da bicicleta, desequilibrando o ciclista e fazendo-o propender para um lado. No caso, infelizmente, para o esquerdo do ciclista, por onde vinha o automóvel, atingindo a bicicleta lateralmente em sua direita. Tal conclusão se faz explicável pela constatação de que o pneu dianteiro da bicicleta estava danificado completamente. Poderia ter-se esvaziado antes do impacto ou pelo impacto. Isso jamais se poderá constatar, tanto que o esvaziamento súbito poderia perfeitamente ser anterior à batida, causado até mesmo por negligência do ciclista, usando um pneu mal conservado e sujeito a esvaziar e desequilibrar esse veículo.

A única circunstância que se pode descartar de modo absoluto é que a batida do carro contra a bicicleta não podia ter ocorrido contra sua parte traseira como sustentado pela acusação e pela sentença supondo possível culpa do motorista. A batida contra o lado da bicicleta, sem dúvida, foi o que realmente ocorreu, ao ter a vítima cortado a frente do carro, causa da funesta colisão.

A câmara julgadora da apelação, por unanimidade, ao se demonstrar a inexistência de um impacto contra a parte traseira da bicicleta, absolveu o acusado, acolhendo a absoluta ausência de demonstração de culpa do motorista, como demonstrara Oswaldo de Lia Pires em sua lógica, magnífica e inatacável sustentação oral.

Vários casos em que Lia Pires enfrentou decisões condenatórias de primeiro grau marcaram a vida profissional do grande e inimitável causídico. Esse fato, que antes se narrou, marca sua argúcia e capacidade interpretativa da prova, a demonstrar que é nos autos que se encontram as condições necessárias e ótimas para demonstrar a verdade ignorada em sentenças e também pelo júri.

Não é simplesmente a aparência do fato e a crueza do resultado que podem levar o judiciário a conclusões condenatórias. O propalado clichê sobre a impunidade, um dos grandes sofismas de nossa sociedade, que muitos segmentos da mídia usam como incentivo para condenações desejadas, mesmo diante de dúvidas razoáveis, chega mesmo a satisfazer anseios populares ou popularescos sobre a necessidade de condenações exemplares. Oswaldo sempre se batia contra condenações socialmente preordenadas, demonstrando, nos casos que abraçava, as inaceitáveis condenações para satisfazer a ânsia condenatória da sociedade. Demonstrava, e demonstrava bem, que a condenação, se proferida, resultaria no maior mal que se poderia causar, a injustiça contra um ser humano.

Certa vez mostrei a ele uma frase que havia colocado em um livro de minha autoria: “a dor da injustiça só é superada pela dor da morte”, ao que ele me respondeu que sempre pensara nisso e que sempre se batera em favor de decisões justas. Disse-me, então, que o verdadeiro advogado é o que sempre se bate contra a injustiça, por ferir profundamente as pessoas. Ademais, nossa ordem jurídica, moral e ética abomina a injustiça.

Não esqueço, por outro lado, uma conversa que tivemos, ao lhe ter perguntado qual tinha sido o momento mais angustiante que vivera em sua atuação profissional. Disse, então, sabedor de minha cidadania santa-cruzense, que fora um processo de Santa Cruz do Sul que lhe exigira uma defesa extremamente difícil, diante de um caso complexo. O processo lhe exigira, além do desprendimento e estudo profundo que empregava em suas defesas, o enfrentamento de um desafio gigantesco.

Lembrei-me muito bem de que caso ele falava.


Tratava-se de uma acusação contra um conhecido químico e comerciante de Venâncio Aires a quem se imputava crime de venefício de sua esposa. Em Santa Cruz se estabelecera a competência para o julgamento, pois o local do crime não dispunha de comarca, sendo termo de Santa Cruz do Sul. Nessa ocasião, lembro bem, ainda muito jovem, nem acadêmico de Direito eu era, acotovelei-me no lotado salão nobre da Prefeitura de Santa Cruz (onde meu bisavô, Galvão Costa, fora intendente e meu avô, José Luiz, subprefeito) para assistir ao júri sobre envenenamento da esposa do comerciante.

A defesa estava a cargo do mais prendado, capaz e eloquente advogado do Rio Grande, Voltaire de Bittencourt Pires, tio e mestre de Oswaldo. Sentaram-se lado a lado, na bancada dos advogados, sob a presidência do Dr. José Faria Rosa da Silva (futuro presidente do Tribunal de Justiça do Estado, conhecido como Desembargador José Silva). No final, veio a vitória, com absolvição pretendida de cinco votos contra dois, em que pese o brilho e esforço contrário do Dr. Paulino de Vargas Vares, um grande advogado, que atuara na acusação.

Novo júri, desta vez na Sociedade Ginástica de Santa Cruz, com a mesma equipe de defesa. A ele assisti do camarote do salão. Nova vitória sob o comando de Voltaire, contando com atuação exemplar, na análise das provas, feita por Lia Pires, e a peroração impecável de seu tio.

Veio então a tragédia. Ao dirigir-se de avião para uma audiência em Lajeado, o monomotor sofreu uma pane e caiu na cidade de São Jerônimo. Pereceu o excelente advogado.

Daí para frente, narrou-me Oswaldo de Lia Pires, ficou com o ônus de seguir a tradição da banca, contando com a presença atuante do Dr. Zolá Emílio Silva que muito auxiliara Voltaire.

Na conversa, Oswaldo passou até a me fazer confidências sobre o momento decisivo de sua carreira, quando então viria a substituir Voltaire na condução da defesa do acusado de envenenamento. Senti, nas suas palavras e em sua expressão fisionômica, um verdadeiro preito à nossa amizade e ao grande respeito eu que lhe dedicava. Fez, então, uma rememoração do passado com absoluta exatidão até quanto aos menores fatos. Sua assunção ao posto de patrono da defesa causava-lhe grande preocupação, embora já vitorioso em outro júri com absolvição em Porto Alegre, comarca fixada por desaforamento para o conhecido caso Marona, oriundo de Alegrete. Deveria ou não assumir solitariamente o debate no júri sobre venefício que então se avizinhava?

Houve mesmo insinuações e manifestações de que deveria compartilhar a difícil tarefa defensiva com outro advogado, mais experiente, para substituir o Dr. Voltaire, embora sabidamente insubstituível. No novo júri, determinado por uma câmara do Tribunal, quem assumisse o comando da defesa deveria levar em consideração o fato jurídico de que o Tribunal de Justiça remetera o caso a um terceiro julgamento, após duas absolvições. Essa situação indicava que as decisões anteriores não teriam sido bem recebidas pelos desembargadores que deferiram recurso do Ministério Público em favor desse terceiro júri. Dessa forma via-se Lia Pires diante de uma opção entre a cruz e a espada, uma alternativa terrível, talvez até mesmo um verdadeiro e irrecusável dilema.

Se assumisse sozinho a hercúlea tarefa, poderia perder o júri, após duas vitórias capitaneadas por seu tio Voltaire, criando-se um conceito negativo sobre sua atuação profissional; se buscasse a companhia de outro advogado, passaria por inseguro e pouco confiante sobre sua própria capacidade profissional, e mesmo diante de uma absolvição a vitória ficaria esmaecida.

Foi o que me relatou na conversa que então mantivemos ao rememorar a terrível situação que vivera. Não somente a atuação no terceiro júri era difícil, como ainda sofria o abalo emocional que lhe causara a morte de seu tio, companheiro e orientador.

Ao assumir o desafio, demonstrou a coragem que o notabilizariam e notabilizaram na atuação profissional, daí para frente. Jamais teve medo e nunca duvidou de si mesmo; foi audaz, embora nunca afoito ou imprudente.


Sua vida profissional veio marcada por descortino, por prudentes cuidados e com absoluta probidade de conduta, como constatei na condição de testemunha da vida desse magnífico advogado. Ao assistir o júri, no salão da Ginástica, deste o camarote em que tinha visão privilegiada, presenciei um jovem advogado, diferente de Voltaire, é claro, mas vibrante, lógico e brilhante como tribuno. Sua postura, diversa; seu traje, sem o mesmo corte; não tinha, também, a cabeleira esvoaçante do tio. Nada o assemelhava a Voltaire, mas usava com destemor sua própria personalidade. Aqui cabe repetir. Assumiu a defesa com galhardia, enfrentando com destemor os critérios antagônicos utilizados na decisão do Tribunal em favor de um novo júri. Vejo o jovem advogado, sozinho, a enfrentar um acórdão unânime, decisão destinada a demonstrar que as absolvições mereciam ser repensadas, quem sabe com uma condenação exemplar.

Segue o júri e o jovem tribuno vai se mantendo impoluto, sem nenhum nervosismo; eleva a voz, vai demonstrando a verdade dos fatos, usando a matéria probatória trazida para os autos. Esquece suas preocupações, domina a matéria com sobrançaria. Além de captar a atenção dos jurados, domina o auditório da sociedade. Todos prestam atenção no que diz, diante de uma absoluta autoridade.

Chega o momento de enfrentar a acusação de venefício. Faz um estudo primoroso dos venenos mortais. Examina o cianeto de potássio (conhecido como cianureto) e demonstra o absurdo de sua utilização no caso em exame. Demonstra que o cianeto de potássio, ao ser ingerido, combina-se com o ácido clorídrico contido no estômago (atuando sobre o bolo alimentar). Forma-se ácido cianídrico, volátil, ou gás cianídrico, capaz de causar incapacidade respiratória, com morte repentina; mas esse resultado súbito não ocorrera! Nenhuma prova demonstrava desenlace imediato. Havia apresentado mal-estar e indisposição, bem como sintomas a serem tratados, bem antes da morte. Segue, então, para o suposto envenenamento, tese sustentada pela acusação, com utilização de substância cáustica, o conhecido arsênico.

Lia Pires segue sua exposição indo mais adiante. Demonstra com estudos médico-científicos de elevado labor experimental que o arsênico, possivelmente encontrado em vísceras da falecida esposa do acusado, encontra-se nas terras de cemitérios, nos caixões do féretro e até mesmo em vestimentas que envolvem a pessoa morta. Os venenos cáusticos como o arsênico demoram muito a desaparecer, daí sua presença em solos e materiais degradáveis como a madeira. O que se encontrou no corpo da pessoa enterrada apresentava quantidade duvidosa, confundindo os peritos ao suporem, mas não demonstrarem, que falecera ela de ingestão desse cáustico. O certo é que o arsênico causa também lesões corrosivas nos tegumentos superiores (boca, esôfago, estômago) por ocasião de sua ingestão oral, resultados não constatados na exumação do cadáver. Além disso, tudo ficara mascarado em situações semelhantes às que constavam dos autos.

Com uma preciosa argumentação, ligada à ausência de motivação para o crime, levou os jurados a absolverem o acusado, consagrando a magnífica oração candente e logica dele, Oswaldo de Lia Pires. Demonstrara sua invulgar capacidade de notável advogado, diferente de seu tio Voltaire, mas com a mesma condição de grande tribuno como sua história viria a demonstrar, a partir do caso de Alegrete. Aliás, a família sempre teve excelentes advogados, como o foi o festejado, primoroso e eloquente orador, Dr. Célio de Lia Pires, o irmão mais jovem. A ela também pertence Érico Barone Pires, que inclusive ingressou na magistratura em brilhante concurso público. Oswaldo sobressaiu, mesmo diante das dificuldades que encontrara e graças à sua invulgar capacidade de profissional do direito e seu brilho de grande tribuno.

Esse é Oswaldo de Lia Pires, desde seu início profissional.


Sua trajetória sempre foi saudada pelos advogados em geral como orientação para casos difíceis, até mesmo quando discordava de orientações jurisprudenciais, atacando-as para que se construíssem soluções mais humanistas, fugindo de meras e literais interpretações das leis. Embora respeitoso da letra das normas jurídicas, procurava compatibilizar o que as leis estabeleciam com inovações de estudos psicológicos e sociológicos necessários a serem investigados pela ordem do direito. Sempre falava e defendia interpretações evolutivas sendo louvado quando propunha mudanças necessárias para salvaguardar os cidadãos de excessos ortodoxos. Para ele, era inconcebível qualquer retroatividade de normas incriminadoras, pois sempre se referia à anterioridade da lei aos fatos a serem julgados. Era veemente contra a aplicação de leis que procurassem dar novas interpretações prejudiciais aos acusados ao abandonarem o que em favor deles já se assentara na jurisprudência.

Na história dos casos criminais mais emblemáticos ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul, dos que mais abalaram a opinião pública, encontra-se o assassinato do jornalista e deputado José Antônio Daudt. A repercussão do fato, logo que noticiado, em horário noturno já avançado, apanhou a todos de forma imediata, como uma onda, partindo da divulgação ouvida nos meios de comunicação, despertando toda a comunidade gaúcha.

O jornalista era muito apreciado por grande parte das pessoas que o ouviam, mas também bastante criticado por suas opiniões. Sua voz potente, ao microfone da Radio Gaúcha, lhe granjeara admiradores em todo o território de nosso Estado. E como sempre acontece com discutidos líderes de audiência, também fizera severos críticos. Era destemido, sendo autor de fortes ataques a comportamentos anti-sociais, sempre cobrando providências de responsáveis por atuações descuidosas e causadoras de danos à comunidade do Estado, nos mais variados setores da sociedade. Se algum órgão ou pessoa devesse zelar pelo bem-estar dos cidadãos em geral e não o fazia, lá vinha a candente palavra de José Antônio Daudt. Não admitia omissões culposas e sempre denunciava a falta de atuação devida, por prejudicar a vida comunitária.

Na fria noite de 4 de junho de 1988, a cidade de Porto Alegre foi abalada pela notícia transmitida pela Rádio Gaúcha e, a seguir, por todas as demais rádios do Estado, de que Daudt tinha sido vítima de homicídio, na entrada do edifício onde morava. As notícias se atropelavam; as pessoas mais representativas da política, do jornalismo, da advocacia, passaram a prestar entrevistas, formulando hipóteses e até mesmo suposições sobre o fato, bem como quanto à autoria da morte do jornalista. Já se havia noticiado que o criminoso usara uma espingarda de caça ao atirar contra a vítima. Supunha-se que o atirador fosse pessoa ligada ao esporte da caça ou mesmo colecionador de armas. Com isso, restringia-se o número de suspeitos. Todavia, não se afastava um grande número de pessoas das que tinham mágoas em relação a Daudt, em razão de suas veementes críticas. Também não se cuidava de investigar até mesmo empresas que guardavam queixas de suas atuações parlamentares, pois algumas visavam impedi-las por se sentirem prejudicadas.

O certo é que as investigações, abandonando a enorme gama de possíveis suspeitos, por serem inimigos de Daudt, passaram a esmiuçar a vida e determinadas situações que vinculavam como suspeito alguém bem próximo da vítima; um ilustre médico e deputado estadual do mesmo partido. Desavenças surgidas entre eles podiam servir de motivações para o crime. Além disso, o investigado era aficionado de caçadas, sendo possuidor de armas. Foi, então, oficialmente indiciado como autor do fato, no inquérito que vinha se desenvolvendo. Para a polícia, pouco importava a existência de outros eventuais suspeitos. Igualmente descartou-se a figura de um homem magro que usava um gorro semelhante ao do atirador e que vinha procurando informações sobre onde se situava a residência do jornalista Daudt. Esse homem nunca mais fora visto depois do fato.

Era um estranho no ninho das relações pessoais da vítima. Alguém contratado?


Diante do indiciamento, o referido médico e deputado acabou sendo denunciado pelo Ministério Público à vara do Júri da comarca da capital. Surgiu, então, uma discussão sobre a competência do órgão judicial ao qual caberia o julgamento. À Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça coube decidir a matéria, tendo-o feito com base em reiteradas decisões do Supremo Tribunal, após uma profunda pesquisa de jurisprudência feita diretamente nos arquivos da Corte Suprema. Não havia discordâncias sobre a competência. Afirmava-se, em conclusão, que, se deputados federais eram julgados pela Corte Suprema do país, os deputados estaduais deveriam ser julgados pelo maior Tribunal do Estado, por ser órgão máximo da Justiça, o denominado Tribunal Pleno. Era uma questão de simetria ou similitude com o plano federal.

Aqui, portanto, seguiu-se a orientação do Supremo e o julgamento ocorreu no Tribunal Pleno, formado por vinte e cinco desembargadores, denominado Órgão Especial, como o é até hoje. Só que em casos de homicídio, crime doloso contra a vida, em que a Constituição do Estado segue a Carta Federal sobre julgamentos de parlamentares, o Supremo, depois disso, alterou sua jurisprudência. Mas, o “caso Daudt” já havia sido julgado, quando valia a orientação jurisprudencial da época.

Cabe agora uma explicação: tempos após o julgamento, passou o STF a entender que constituições estaduais não podem dispor de modo diverso do que consta na Constituição Federal quanto aos crimes dolosos contra a vida, segundo seu art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “b”, para os quais o julgamento só pode ser feito pelo júri. A Constituição Federal abre uma exceção, afastando a competência do júri por crimes dolosos contra a vida, apenas quanto às pessoas ocupantes de cargos mencionados em seu artigo 102, inciso I, alínea “b”, onde se incluem os membros do Congresso Nacional e outros titulares de prerrogativas de função. Esses são julgados pelo Supremo, sejam quais forem os crimes de que são acusados. Isto é, deputados estaduais não são contemplados com foro de tribunais nos casos de crimes dolosos contra a vida, pois haveria infração à norma constitucional do já citado art. 5º, inciso XXXVIII, alínea “b”, que supera as constituições estaduais. Para os demais delitos, no entanto, vale a competência da Constituição Estadual, em que os deputados são julgados pelo Tribunal de Justiça. A nova jurisprudência veio sacramentada pela Sumula 721, que na época ainda não existia.

Desde o oferecimento da denúncia contra o indiciado, este contratara o Dr. Oswaldo de Lia Pires para defendê-lo perante o Tribunal, órgão máximo da Justiça do Estado. Somente o mais consagrado tribuno deveria ser chamado para o encargo da defesa, ante a responsabilidade de apresentar suas teses justamente perante o mais elevado areópago do Estado.

Seguiu-se a instrução probatória, após o interrogatório do acusado. Negou ele a autoria do fato e deu explicações sobre onde se encontrava no momento da deflagração do disparo da arma de caça. Feito o relatório escrito pelo Des. Décio Erpen, passou-se a palavra à acusação composta pelo Procurador-Geral da Justiça, Dr. Paulo Olímpio Gomes de Souza, de reconhecida e elevada carreira no Parquet, e pelo assistente da acusação, o eminente criminalista Dr. Amadeu de Almeida Weinmann. A acusação fundamentou, em longo trabalho oral, o pedido de condenação do réu. Veio, a seguir, a sustentação do Dr. Oswaldo de Lia Pires, alegando inocência de seu defendido por negativa de autoria. Inúmeras eram as testemunhas, cabendo ao defensor, como já o fizera o Dr. Procurador-Geral, uma análise completa dos elementos probatórios constantes dos depoimentos.

Veio então a novidade.


Lia Pires, usando a mais moderna técnica de informática fez uma projeção na tela montada no salão do Tribunal Pleno onde mostrou a falta de veracidade de um dos depoimentos, possivelmente o de maior teor acusatório. Tratava-se de uma senhora, surda, que indicava, de visu, o acusado como a pessoa que atirara contra o jornalista. Demonstrou Lia Pires a inconsistência do testemunho, pela absoluta impossibilidade de haver ela presenciado o fato, a partir do ponto em que estava. As imagens projetadas na tela demonstravam essa impossibilidade, pois havia obstáculos à sua visão.

Passou para o exame de outros depoimentos e chegou à conclusão sobre a absoluta ausência de elementos sérios da prova, demonstrando, com isso, a inviabilidade da versão que partira do inquérito policial, baseado em frágeis elementos circunstanciais. Examinou o relacionamento dos deputados e concluiu pela absoluta falta de motivação para o cometimento do crime, partindo do exame aprofundado da personalidade do acusado.

Finalmente, encerraram-se os debates, proferidos em elevado nível pelos juristas que procuravam sustentar seus pontos de vista e suas conclusões. Veio proferido o voto do Desembargador Relator, trazendo sua conclusão pela condenação do acusado. Seguiram-se os votos dos demais desembargadores, eis presentes, ao todo, vinte e dois membros do Tribunal. O Presidente da corte somente votaria em caso de empate; era o que os presentes e os representantes das emissoras de rádio supunham.

A tendência dos votos, em manifestações orais, à medida que eram conhecidos, já demonstrava a possível absolvição. Apenas sete dos membros do Tribunal proferiram condenação. Oito absolviam por falta de provas. Seis manifestaram-se por entender que o acusado não cometera o crime, ou seja, acolhendo a tese de negativa de autoria. No total, quatorze desembargadores proclamaram votos de absolvição. Sete votaram pela condenação. O caso estava definitivamente encerrado.

Mais uma vez, Lia Pires saíra vitorioso.


Examinara com proficiência a prova dos autos, a personalidade dos envolvidos no julgamento, a coerência da palavra do réu no interrogatório e a existência, apenas, de elementos circunstanciais inconclusivos. A absolvição era o único caminho em favor da justiça. Oswaldo de Lia Pires fora um grande batalhador em favor das decisões justas. Questionado sobre a falta de indicação do verdadeiro criminoso, esclareceu que tal fato não cabia à defesa do réu e sim à polícia investigativa. Nesse ponto, ela não obtivera resultados. O que competia à defesa era demonstrar a inocência do réu sob julgamento e nisso se saiu mais uma vez plenamente vitorioso.

Agora, após tantas demonstrações de sabedoria jurídica e preito à verdadeira justiça, há de se indagar como reagiria o grande defensor do verdadeiro direito justo, ao constatar votos de Ministros do Supremo em favor de execução de penas imediatamente após simples condenações de réus em segunda instância jurisdicional, ainda dependendo de trânsito em julgado. A defesa dessa tese, pura e simplesmente, como elemento suficiente para e execução imediata da pena, certamente seria por ele criticada com a reconhecida voz de um dos mais respeitados advogados de nosso país.

A prisão, sem trânsito em julgado de decisão condenatória pelo Segundo Grau, somente se poderia admitir se alguém, condenado provisório, no curso do processo, incidisse em condutas de gravidade que se devessem impedir para não ofender a ordem pública, bem como nos casos com prosseguimento de lesões econômicas criminosas. Aliás, o art. 312 do CPP prevê, à exaustão, os casos de prisão não definitiva, como os dois já citados. Segue, ainda pelo confinamento, se o processado agir de modo a atingir a higidez processual ou se estiver a ponto de evadir-se para impedir a aplicação da lei.

Por outro lado, a prisão pura e simples, atingindo sem justificativa jurídica o princípio que exige trânsito em julgado para quebrar a presunção de inocência, jamais seria aceita por Lia Pires, o grande patrono de causas justas, assim como pensam os que não aceitam a prisão imotivada simplesmente após julgamento pelo segundo grau de jurisdição.

Tudo o que se expôs serve para demonstrar a grande lição de vida, sob todos os pontos de vista, que Oswaldo de Lia Pires deixou a nós e a todos os que amam o Direito e a Justiça.


Por Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira

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